De negros a muçulmanos, 2015 foi ano em que super-heróis abraçaram o mundo

ms-marvel-1

 

O ano de 2015 provavelmente entrará para a história da editora de quadrinhos Marvel Comics como aquele no qual o escudo do Capitão América passou a ser de responsabilidade de um soldado negro, o martelo do Thor virou a arma de uma mulher e o alter-ego do Hulk se transfigurou em um jovem de origem coreana. Ao longo dos últimos 12 meses, um dos principais grupos de publicações de histórias em quadrinhos do planeta deu continuidade à transformação de sua linha editorial majoritariamente protagonizada por heróis homens, brancos e ocidentais em uma potencial referência de diversidade e representatividade da variedade de gêneros e etnias da população mundial.

“A Marvel tem feito essas mudanças para vender mais porque é isso que seu público, cada vez mais, quer consumir: histórias nas quais ele possa se ver de alguma forma. O que leva a editora a se reinventar é a transformação, ou subversão, no gosto do público – mais questionador, mais alerta e, acho que principalmente, mais de saco cheio”, analisa a pesquisa e tradutora de histórias em quadrinhos Dandara Palankof.

Além da nova versão dos três membros dos Vingadores, a editora levou para seu universo principal de heróis uma versão alternativa do Homem-Aranha. Sucesso de público, Miles Morales é uma versão adolescente, negra e de ascendência latina do herói aracnídeo. Da mesma forma, a Miss Marvel é hoje uma adolescente muçulmana de 16 anos com pais paquistaneses que mora em Nova Jersey. Nos X-Men, o Homem de Gelo revelou ser gay e o uniforme do Wolverine também passou a ser utilizado por uma mulher. Também podem entrar para essa conta a Mulher-Aranha, atualmente grávida, combatendo o crime, e a nova líder dos Guardiões da Galáxia.

Criada em 2013, a Miss Marvel de origem paquistanesa ganhou revista própria em fevereiro de 2014 e terá sua primeira coletânea em português até o final do mês de dezembro. A série foi indicada a alguns dos principais troféus da indústria de HQs dos Estados Unidos em 2015 (cinco nomeações ao Eisner e duas ao Harvey) e recebeu o renomado Hugo Award de Melhor Narrativa Gráfica em 2015.

Miles Morales é o único dessa nova leva de personagens com suas revistas já disponíveis em bancas brasileiras. De acordo com a editora Panini Comics, responsável pelos títulos da Marvel no Brasil, as demais publicações deverão chegar ao país ao longo de 2016. 

Ana Costa, uma das proprietárias da Gibiteria, localizada em São Paulo e uma das principais lojas de quadrinhos no país, conta que a expectativa de seus clientes em relação às futuras publicações têm sido intensa e positiva: “Temos um marcador de livros da Thor, de armadura e empunhando o martelo. Quando eu conto a nova história, muita gente fica empolgada, especialmente as mulheres e as meninas.  As personagens femininas costumam estar sempre de collant e em poses provocantes; é um alívio poder ver uma personagem e pensar ‘queria ser forte como ela’ em vez de pensar ‘queria ser bonita/magra/sexy como ela'”.

A sociedade mudou
Roteirista de histórias em quadrinhos e professor de História, o potiguar Jamal Singh diz ver uma adaptação quase natural da Marvel às transformações sofridas pela sociedade dos Estados Unidos ao longo das últimas décadas. “A família norte-americana não segue mais o padrão ‘pai branco-mãe branca-todo mundo cristão-um casal de filhos. As famílias norte-americanas são multiétnicas e culturais, e não mais tão presas aos padrões tradicionais de gênero e sexualidade”, afirma o autor.

A análise de Singh vai de encontro à leitura de Palankof em relação à imposição quase mercadológica por maior representatividade no mercado de histórias em quadrinhos: “A homogeneidade de representação acaba por criar uma condição de invisibilidade social. Se você não consegue se ver no seriado, no filme, no livro ou no gibi que você gosta, é como se a sociedade que cria essas histórias e personagens não reconhecesse que existem pessoas como você. A editora faz pra vender, porque isso é o que o público quer consumir, pois está diante de novos valores que refletem em seus hábitos de consumo”.

Colorista de uma das séries regulares do mutante Wolverine e de algumas edições mensais dos X-Men e dos Guardiões da Galáxia, o artista paulista Marcelo Maiolo diz que as investidas editoriais da Marvel podem abrir algumas possibilidades para o futuro da empresa: “Tem muita gente feliz e ansiosa com essas mudanças tardias e para onde elas vão nos levar, enquanto outras acham uma bobagem. São esses últimos que estão atrasados para este novo momento”.

Segundo ele, as escolhas da Marvel acabam impondo reflexões aos autores de outras séries e editoras. Criador da série virtual ‘King’, publicada com exclusividade pela Amazon, Maiolo diz ter pensado bastante com os demais autores do título sobre as origens e características de seus personagens: “Essa foi uma conversa que o Joshua (Hale, roteirista), o Bernard (Chang, ilustrador) e eu tivemos. O personagem principal é o último ser humano na terra e ele é asiático, sua irmã é negra e sua parceira, que não é humana, tem os traços e cores latinas”.

Para além das aparências
Uma ressalva sobre essa leva inclusiva de super-heróis e heroínas vem em relação aos autores das obras. Ana Costa lembra que os artistas responsáveis pelos gibis ainda não são tão diversificados: “A Marvel tem dado grandes passos ao contemplar essa quebra de paradigmas através dos seus personagens, mesmo que essa mudança seja motivada principalmente por questões financeiras. Agora, o que precisa ser feito é também aumentar a diversidade nas equipes criativas dos títulos da editora. Não basta apenas vender a ideia de que representatividade é legal, a Marvel precisa também abrir mais espaço para desenhistas e roteiristas com backgrounds diversos”.

Singh concorda. “Não adianta fazer um título de heroína e insistir no sexismo com um autor colocando seus fetiches sobre o que é ser mulher e um desenhista explorando a protagonista em poses ginecológicas. Falta à indústria permitir que autores mais próximos do personagem escrevam sobre ele”, reitera.

O quadrinista do Rio Grande do Norte sintetiza a questão da representatividade e também lembra uma frase proferida pelo criador dos principais heróis da editora: “Mudar um personagem como o Pantera Negra de negro para branco seria uma apropriação cultural, sinônimo sim de racismo, pois há toda uma cultura africana ancestral por trás do símbolo do personagem. Já um personagem estadunidense mudar de gênero, sexualidade ou etnia reflete apenas a diversidade que há na própria América. Como disse o Stan Lee, ‘uma das melhores coisas sobre o Homem-Aranha é que pode ser qualquer um por trás da máscara. Todo garoto, branco, negro ou asiático, se vê ali'”.

Hoje também um dos maiores estúdios de cinema do mundo, com um universo cinematográfico composto por 12 filmes, a Marvel chegará ao seu 13º longa-metragem em maio de 2016, com o lançamento de ‘Capitão América: Guerra Civil’. No entanto, a realidade do cinema ainda é distante do universo diversificado dos gibis. “O norte para essas produções alcançarem um público massivo ainda é não se arriscarem muito. São feitos para realizar as fantasias de poder de homens brancos, héteros, cristãos e de classe média. Mas hoje os movimentos em prol da igualdade têm se espalhado cada vez mais. Apesar de termos notáveis exceções, elas ainda são exatamente isso: as exceções. Mas eu sou otimista, eu acho que o que a gente tá vendo é só o começo de uma revolução”, torce Palankof.

 

via

Leia Mais
Timothée Chalamet na Marvel? Ator revela se faria filmes de heróis